"Teu amor pelas cousas sonhadas era teu desprezo pelas cousas vividas."

terça-feira, 30 de junho de 2009

Memorial em Sombras.


Depois dos dias todos de chuva, de novo o céu traz o azul, que escondera, aos grandes espaços do alto. Entre as ruas, onde as poças dormem como charcos do campo, e a alegria clara que esfria no alto, há um contraste que torna agradáveis as ruas sujas e primaveril o céu de inverno baço. É domingo e não tenho que fazer. Nem sonhar me apetece, de tão bem que está o dia. Gozo-o com uma sinceridade de sentidos a que a inteligência se abandona.
Passeio como um caixeiro liberto. Sinto-me velho, só para ter o prazer de me sentir rejuvenescer.
Na grande praça dominical há um movimento solene de outra espécie de dia. Em São Domingos há a saída de uma missa, e vai principiar outra. Vejo uns que saem e os que ainda não entraram, esperando por alguns que não estão vendo quem sai.
Todas estas coisas não têm importância. São, como tudo no comum da vida, um sono dos mistérios e das ameias, e eu olho, como um arauto chegado, a planície da minha meditação.
Outrora, criança, eu ia a esta mesma missa, ou porventura à outra, mas devia ser a esta. Punha, com a devida consciência, o meu único fato melhor, e gozava tudo - até o que não tinha razão de gozar. Vivia por fora e o fato era limpo e novo. Que mais quer quem tem que morrer e o não sabe pela mão da mãe?
Outrora gozava tudo isto, por isso é só agora, talvez, que compreendo quanto o gozava. Entrava para a missa como para um grande mistério, e saía da missa como para uma clareira. E assim é que verdadeiramente era, e ainda verdadeiramente é. Só o ser que não crê e é adulto, com alma que recorda e chora, são a ficção e o transtorno, o desalinho e a lajem fria.
Sim, o que eu sou fora insuportável, se eu não pudesse lembrar-me do que fui. E esta multidão alheia que continua ainda a sair da missa, e o princípio da multidão possível que começa a chegar para entrar para a outra - tudo isto são como barcos que passam por mim, rio lento, sob as janelas abertas do meu lar erguido sobre a margem.
Memórias, domingos, missas, prazer de haver sido, milagre do tempo que ficou por ter passado, e não esquece nunca porque foi meu... Diagonal absurda das sensações normais, som súbito de carruagem de praça que soa rodas no fundo dos silêncios ruidosos dos automóveis, e de qualquer modo, por um paradoxo maternal do tempo, subsiste hoje, aqui mesmo, entre o que sou e o que perdi, no antero olhar de mim que sou eu...

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Ameno.



- O seu olhar tem qualquer coisa de música tocada a bordo dum barco, no meio misterioso de um rio com florestas na margem oposta...
- Não diga que é fria uma noite de luar. Abomino as noites de luar... Há quem costume realmente tocar música nas noites de luar... - Isso também é possível... E é lamentável, está claro... Mas o seu olhar tem realmente o desejo de ser saudoso de qualquer coisa... Falta-lhe o sentimento que exprime... Acho na falsidade da sua expressão uma quantidade de ilusões que tenho tido...
- Creia que sinto às vezes o que digo, e até, apesar de mulher, o que digo com o olhar...
- Não está sendo cruel para consigo própria? Nós sentimos realmente o que pensamos que estamos sentindo? Esta nossa conversa, por exemplo, tem visos de realidade? Não tem. Num romance não seria admitida.
- Com muita razão... Eu não tenho a absoluta certeza de estar falando consigo, repare... Apesar de mulher, criei-me um dever de ser estampa de um livro de impressões de um desenhista doido... Tenho em mim detalhes exageradamente nítidos... Dá um pouco, bem sei, a impressão de realidade excessiva e um pouco forçada... Acho que a única coisa digna de uma mulher contemporânea é este ideal de ser estampa. Quando eu era criança queria ser a rainha dum naipe qualquer num baralho de cartas antigo que havia em minha casa... Achava esse mister de uma heráldica realmente compassiva... Mas quando se é criança, tem-se aspirações morais destas... Só depois, na idade em que as nossas aspirações são todas imorais, é que pensamos nisso a serto...
- Eu, como nunca falo a crianças, creio no instinto artista delas... Sabe, enquanto estou falando, agora mesmo, eu estou querendo penetrar o íntimo sentido dessas coisas que me estava dizendo... Perdoa-me?
- Não de todo... Nunca se deve devassar os sentimentos que os outros fingem que têm. São sempre demasiadamente íntimos... Acredite que me dói realmente estar-lhe fazendo estas confidências íntimas, que, se bem que todas elas falsas, representam verdadeiros farrapos da minha pobre alma... No fundo, acredite, o que somos de mais doloroso é o que não somos realmente, e as nossas maiores tragédias passam-se na nossa ideia de nós.
- Isso é tão verdadeiro... Para que dizê-lo? Feriu-me. Para que tirar à nossa conversa a sua irrealidade constante? Assim é quase uma conversa possível, passada a uma mesa de chá, entre uma mulher linda e um imaginador de sensações.
- Sim, sim... É a minha vez de pedir perdão... Mas olhe que eu estava distraída e não reparei realmente em que tinha dito uma coisa justa... Mudemos de assunto... Que tarde que é sempre!... Não se torne a zangar... Olhe que esta minha frase não tem sentido absolutamente nenhum...
- Não me peça desculpas, não repare em que estamos falando... Toda a boa conversa deve ser um monólogo de dois... Devemos, no fim, não poder ter a certeza se conversámos realmente com alguém ou se imaginámos totalmente a conversa... As melhores e as mais íntimas conversas, e sobretudo as menos moralmente instrutivas, são aquelas que os romancistas têm entre duas personagens das suas novelas... Como exemplo...
- Por amor de Deus! Não ia decerto citar-me um exemplo... Isso só se faz nas gramáticas; não sei se se recorda que até nunca as lemos.
- Leu alguma vez uma gramática?
- Eu nunca. Tive sempre uma aversão profunda a saber como se dizem as coisas... A minha única simpatia, nas gramáticas, ia para as excepções e para os pleonasmos... Escapar às regras e dizer coisas inúteis resume bem a atitude essencialmente moderna... Não é assim que se diz?...
- Absolutamente... O que tem de antipático nas gramáticas (já reparou na deliciosa impossibilidade de estarmos falando neste assunto?) - o que há de mais antipático nas gramáticas é o verbo, os verbos... São as palavras que dão sentido às frases... Uma frase honesta deve sempre poder ter vários sentidos... Os verbos!... Um amigo meu que se suicidou - cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo - tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir os verbos...
- Ele por que se suicidou?
- Espere, ainda não sei... Ele pretendia descobrir e fixar o modo de não completar as frases sem parecer fazê-lo. Ele costumava dizer-me que procurava o micróbio da significação... Suicidou-se, é claro, porque um dia reparou na responsabilidade imensa que tomara sobre si... A importância do problema deu-lhe cabo do cérebro... Um revólver e...
- Ah, não... Isso de modo algum... Não vê que não podia ser um revólver?... Um homem desses nunca dá um tiro na cabeça... O senhor pouco se entende com os amigos que nunca teve... É um defeito grande, sabe?... A minha melhor amiga - uma deliciosa rapaz que eu inventei -
- Dão-se bem?- Tanto quanto é possível... Mas essa rapariga, não imagina,


(...)

domingo, 14 de junho de 2009

Isolamento.


Mas a exclusão, que me impus, dos fins e dos movimentos da vida; a ruptura, que procurei, do meu contacto com as coisas levou-me precisamente àquilo a que eu procurava fugir. Eu não queria sentir a vida, nem tocar nas coisas, sabendo, pela experiência do meu temperamento em contágio do mundo, que a sensação da vida era sempre dolorosa para mim. Mas ao evitar esse contacto, isolei-me, e, isolando-me, exacerbei a minha sensibilidade já excessiva. Se fosse possível cortar de todo o contacto com as coisas, bem iria à minha sensibilidade. Mas esse isolamento total não pode realizar-se. Por menos que eu faça, respiro; por menos que aja, movo-me. E, assim, conseguindo exacerbar a minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os factos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem comocatástrofes. Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incómodo, para o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre o horror de viver ali.
Nunca encarei o suicídio como uma solução, porque eu odeio a vida por amor a ela. Levei tempo a convencer-me deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque o convencimento é em mim sempre a perda de uma ilusão.
Matei a vontade a analisá-la. Quem me tornara a infância antes da análise, ainda que antes da vontade!
Nos meus parques, sono morto, a sonolência dos tanques ao sol-alto, quando os rumores dos insectos chusmam na hora e me pesa viver, não como uma mágoa, mas como uma dor física por concluir.
Palácios muito longe, parques absortos, a estreiteza das áleas ao longe,a graça morta dos bancos de pedra para os que foram - pompas mortas, graça desfeita, ouropel perdido.
Meu anseio que esqueço, quem me dera recuperar a mágoa com que te sonhei.