"Teu amor pelas cousas sonhadas era teu desprezo pelas cousas vividas."

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

88.


"Quando acabará isto tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto as mãos da noite por entre os meus farrapos? Se um dia Deus me viesse buscar e me levasse para sua casa e me desse calor e afeição... As vezes penso isto e choro com alegria a pensar que o posso pensar... Mas o vento arrasta-se pela rua fora e as folhas caem no passeio... Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum... E de tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, que nenhum Amor quis para seu filho adoptivo, nem nenhuma Amizade para seu companheiro de brinquedos."

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Paisagem da Chuva.

Toda a noite, e pelas horas fora, o chiar da chuva baixou. Toda a noite, comigo entredesperto, a sua monotonia fria me insistiu nos vidros. Ora um rasgo de vento, em ar mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava mãos rápidas pela vidraça; ora um som surdo só fazia sono no exterior morto. A minha alma era a mesma de sempre, entre lençóis como entre gente, dobrosamente consciente do mundo. Tardava o dia como a felicidade e àquela hora parecia que tardava indefinidamente.

"Se o dia e a felicidade nunca viessem! Se esperar, ao menos, pudesse nem sequer ter a desilusão de conseguir.O som casual de um carro tardo, áspero a saltar nas pedras, crescia do fundo da rua, estralejava por baixo da vidraça, apagava-se para o fundo da rua, para o fundo do vago sono que eu não conseguia de todo. Batia, de quando em quando, uma porta de escada. Às vezes havia um chapinhar líquido de passos, um roçar por si mesmas de vestes molhadas. Uma ou outra vez, quando os passos eram mais, soava alto e atacava. Depois o silêncio volvia, com os passos que se apagavam, e a chuva continuava, inumeravelmente.

Nas paredes escuramente visíveis do meu quarto, se eu abria os olhos do sono falso, boiavam fragmentos de sonhos por fazer, vagas luzes, riscos pretos, coisas de nada que trepavam e desciam. Os móveis, maiores do que de dia, manchavam vagamente o absurdo da treva. A porta era indicada por qualquer coisa nem mais branca, nem mais preta do que a noite, mas diferente. Quanto à janela, eu só a ouvia.

Nova, fluida, incerta, a chuva soava. Os momentos tardavam ao som dela. A solidão da minha alma alargava-se, alastrava, invadia o que eu sentia, o que eu queria, o que eu ia a sonhar. Os objectos vagos, participantes, na sombra, da minha insónia, passavam a ter lugar e dor na minha desolação."

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Pelos corredores silenciosos.


"Nem um gesto involuntário, nem mesmo a mínima contração dos músculos da face, nem um movimento dos olhos ou dos lábios traíam nunca os pensamentos em que parecia absorto, o secreto pesar em que se fechava. Mas deste secreto pesar e dos lúgubres pensamentos que se lhe aninhavam no cérebro estava toda impregnada a sua fisionomia. A devastação que eles deviam produzir naquela alma, estava flagrante na fixidez espasmódica dos olhos claros, agudos, na lividez do rosto desfigurado, nos precoces fios grisalhos da barba crespa e desleixada.
Tulio Buti não escrevia nem recebia cartas; não lia jornais; não parava nem se virava para ver o que quer que acontecesse pela rua e que atraísse a alheia curiosidade, e, se alguma vez a chuva o colhia de improviso, continuava caminhando, no mesmo passo, como se nada tivesse acontecido.
Por que insistisse em viver desse modo, era o que ninguém sabia... Nem ele mesmo, talvez. Vivia... Nem sequer suspeitava que fosse possível viver de modo diverso, ou então, que, vivendo-se diversamente, se poderia diminuir o peso da tristeza e do tédio.
...Daí por diante, Tulio Buti não esperou mais no seu quarto a luz da outra casa; ao contrário esperou com impaciência que a luz se apagasse."
(Texto - Pirandello; Fotografia - Anônima, Cidade de Tirol)

sábado, 1 de novembro de 2008

Sem título e bastante breve.


Tenho o olhar preso aos ângulos escuros da casa, tento descobrir um cruzar de linhas misteriosas, e com elas quero construir um templo em forma de ilha ou de mãos disponíveis para o amor.... na verdade, estou derrubado sobre a mesa em fórmica suja duma taberna verde, não sei onde procuro as aves recolhidas na tontura da noite. Embriagado entrelaço os dedos, possuo os insectos duros como unhas dilacerando os rostos brancos das casas abandonadas, á beira mar...
Dizem que ao possuir tudo isto poderia Ter sido um homem feliz, que tem por defeito interrogar-se acerca da melancolia das mãos... esta memória lamina incansável
Um cigarro, outro cigarro vai certamente acalmar-me.... que sei eu sobre as tempestades do sangue? E da água? no fundo, só amo o lodo escondido das ilhas...
Amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso estou imóvel, a luz atravessa-me como um sismo. Hoje, vou correr à velocidade da minha solidão.
(Al Berto)