"Teu amor pelas cousas sonhadas era teu desprezo pelas cousas vividas."

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Da minha aldeia.


Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não, do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
Tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.
Caeiro

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Manhã.


Acordei hoje muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me logo da cama, sob o estrangulamento de um tédio incompreensível. Nenhum sonho o havia causado; nenhuma realidade o poderia ter feito. Era um tédio absoluto e completo, mas fundado em qualquer coisa. No fundo obscuro da minha alma, invisíveis, forças desconhecidas travavam uma batalha em que meu ser era o solo, e todo eu tremia do embate incógnito. Uma náusea física da vida inteira nasceu com o meu despertar. Um horror a ter que viver ergueu-se comigo da cama. Tudo me pareceu oco e tive a impressão fria de que não há solução para problema algum.

  Uma inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos mínimos. Tive receio de endoidecer, não de loucura, mas de ali mesmo. O meu corpo era um grito latente. O meu coração batia como se falasse.

  Com passos largos e falsos, que em vão procurara tornar outros, percorri, descalço, o comprimento pequeno do quarto, e a diagonal vazia do quarto interior, que tem a porta ao canto para o corredor da casa. Com movimentos incoerentes e imprecisos, toquei nas escovas em cima da cómoda, desloquei uma cadeira, e uma vez bati com a mão movida em baloiço o ferro acre dos pés da cama inglesa. Acendi um cigarro, que fumei por subconsciência, e só quando vi que tinha caído cinza sobre a cabeceira da cama - como, se eu não me debruçara ali? - compreendi que estava possesso, ou coisa análoga, em ser quando não em nome, e que a consciência de mim, que eu deveria ter, se tinha intervalado com o abismo.

  Recebi o anúncio da manhã, a pouca luz fria que dá um vago azul branco ao horizonte que se revela, como um beijo de gratidão das coisas. Porque essa luz, esse verdadeiro dia, libertava-me, libertava-me não sei de quê, dava-me o braço à velhice incógnita, fazia festas à infância postiça, amparava o repouso mendigo da minha sensibilidade transbordada.

  Ah, que manhã é esta, que me desperta para a estupidez da vida, e para a grande ternura dela! Quase que choro, vendo esclarear-se diante de mim, debaixo de mim, a velha rua estreita, e quando os taipais da mercearia da esquina já se revelam castanho sujo na luz que se extravasa um pouco, o meu coração tem um alívio de conto de fadas reais, e começa a conhecer a segurança de se não sentir.

  Que manhã esta mágoa! E que sombras se afastam? E que mistérios se deram? Nada: o som do primeiro eléctrico como um fósforo que vai alumiar a escuridão da alma, e os passos altos do meu primeiro transeunte que são a realidade concreta a dizer-me, com voz de amigo, que não esteja assim.


sexta-feira, 6 de novembro de 2009

À margem...


O meu desalinhamento para com a vida não poderia resultar senão no isolamento prematuro em que me encontro e que não poderia ser mais natural diante de qualquer coisa obscura intrínseca ao meu temperamento. Minha voz calada, minha letra não notada, meu sorriso por existir, meus passos silenciosos sobre as folhas que secaram no parque abandonado... mas que ecoam no meu cotidiano.
Um Café amargo, uma música discreta, um pouco de sol, um pouco de brisa, o frescor da chuva a se aproximar, umas árvores que emolduram a distância, o desejo de ser feliz, a mágoa de os dias passarem, a ciência sempre incerta e a verdade sempre por descobrir completam minhas horas... Mais nada, mais nada... Sim, mais nada...


sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Lisbon Revisited.


  Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.  
  Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.  
  Não há na travessa achada o número da porta que me deram.  

  Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.  
  Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.  
  Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.  
  Até a vida só desejada me farta - até essa vida...  

  Compreendo a intervalos desconexos;  
  Escrevo por lapsos de cansaço;  
  E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.  
  Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;  
  Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;  
  ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.  

  Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...  
  E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,  
  Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa  
  (E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),  
  Nas estradas e atalhos das florestas longínquas  
  Onde supus o meu ser,  
  Fogem desmantelados, últimos restos  
  Da ilusão final,  
  Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,  
  As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus

  Outra vez te revejo,  
  Cidade da minha infância pavorosamente perdida...  
  Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...  

  Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,  
  E aqui tornei a voltar, e a voltar.  
  E aqui de novo tornei a voltar?  
  Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,  
  Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,  
  Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?  

  Outra vez te revejo,  
  Com o coração mais longínquo, a alma menos minha. 

  Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,  
  Transeunte inútil de ti e de mim,  
  Estrangeiro aqui como em toda a parte,  
  Casual na vida como na alma,  
  Fantasma a errar em salas de recordações,  
  Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem  
  No castelo maldito de ter que viver...  

  Outra vez te revejo,  
  Sombra que passa através das sombras, e brilha  
  Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,  
  E entra na noite como um rastro de barco se perde  
  Na água que deixa de se ouvir...  

  Outra vez te revejo,  
  Mas, ai, a mim não me revejo!  
  Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,  
  E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -  
  Um bocado de ti e de mim!..

Álvaro de Campos - 1926.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Morte.


Uma série de desastre e factos contrários ao meu desejo sucedem ao longo da minha vida.

Por isso me abandono à sorte, sem esperar muito dela.

A minha vida é inteiramente fútil e inteiramente triste.

domingo, 11 de outubro de 2009

Domingo Despedaçado.


 Meu coração chora  
 Na sombra dos parques,  
 Não tem quem o console  
 Verdadeiramente,  
 Exceto a própria sombra dos parques  
 Entrando-me na alma,  
 Através do pranto.  
 Dá-me rosas, rosas,  
 E llrios também...  
  
 Minha dor é velha  
 Como um frasco de essência cheio de pó.  
 Minha dor é inútil  
 Como uma gaiola numa terra onde não há aves,  
 E minha dor é silenciosa e triste  
 Como a parte da praia onde o mar não chega.  
 Chego às janelas  
 Dos palác ios arruinados  
 E cismo de dentro para fora  
 Para me consolar do presente.  
 Dá-me rosas, rosas,  
 E lírios também...  
  
 Mas por mais rosas e lírios que me dês,  
 Eu nunca acharei que a vida é bastante.  
 Faltar-me-á sempre qualquer coisa,  
 Sobrar-me-á sempre de que desejar,  
 Como um palco deserto.  
  
 Por isso, não te importes com o que eu penso,  
 E muito embora o que eu te peça  
 Te pareça que não quer dizer nada,  
 Minha pobre criança tísica,  
 Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,  
 Dá-me rosas, rosas,  

 E lírios também..

(Álvaro de Campos)

sábado, 10 de outubro de 2009

Reflexões silenciosas vespertinas.

Não sei que efeito subtil de luz, ou ruído vago, ou memória de perfume ou música, tangida por não sei que influência externa, me trouxe de repente, em pleno ir pela rua, estas divagações que registo sem pressa, ao sentar-me no café, distraidamente. Não sei onde ia conduzir os pensamentos, ou onde preferiria conduzi-los. O dia é de um leve nevoeiro húmido e quente, triste sem ameaças, monótono sem razão. Dói-me qualquer sentimento que desconheço; falta-me qualquer argumento não sei sobre quê; não tenho vontade nos nervos. Estou triste abaixo da consciência. E escrevo estas linhas, realmente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer qualquer coisa, mas para dar um trabalho à minha desatenção. Vou enchendo lentamente, a traços moles de lápis rombo - que não tenho sentimentalidade para aparar -, o papel branco de embrulho de sanduíches, que me forneceram no café, porque eu não precisava de melhor e qualquer servia, desde que fosse branco. E dou-me por satisfeito. Reclino-me. A tarde cai monótona e sem chuva, num tom de luz desalentado e incerto... E deixo de escrever porque deixo de escrever.

Loco image: Firenze - Italia.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Marcha Fúnebre ao Rei Luiz II da Baviera.


Hoje, mais demorada do que nunca, veio a morte vender ao meu limiar. Deante de mim, mais demorada do que nunca, desdobrou os tapetes, as sedas, e os damascos, do seu esquecimento e da sua consolação. Sorria d'elles, por elogio, e não se importando que eu a visse. Mas quando eu tentava por me comprar, fallou-me que não os vendia. Não viera para que eu quizesse o que me mostrava; mas para que, por o que mostrava, a quizesse a ella. E, dos seus tapetes, disse-me que eram os que gosavam no seu palacio longínquo; das suas sedas, que outras se não trajavam no seu castello na sombra; dos seus damascos, que melhores ainda eram os que cobriam, toalhas, os retabulos da sua estancia para além do mundo.

O Apego natal, que me prendia ao meu limiar desvestido, com gesto suave desligou. "O teu lar" disse "não tem lume: para que queres tu ter um lar?" "A tua casa" disse "Não tem pão: para que te serve a tua meza?" "A tua vida" disse "não tem quem a acompanhe: para que te seduz a tua vida"?

"Eu sou" disse ela, "O lume das lareiras apagadas, o pão das mezas desertas, a companheira sollicita dos solitários e dos incomprehendidos. A glória que falta no mundo, é pompa no meu negro dominio. No meu imperio, o amor não cansa, porque soffra por ter; nem doe, porque canse de nunca ter tido. A minha mão pousa de leve nos cabellos dos que pensam, e elles esquecem; contra meu seio se encostam os que em vão esperavam, e elles enfim confiam."

"O amor que me teem", ella disse, "Não tem paixão que consuma; ciume que desvarie; esquecimento que deslustre. Amar-me é como uma noite de verão, quando os mendingos dormem ao relento, e parecem pedras à beira dos caminhos. Dos meus labios mudos não vem canto como o das sereias, nem melodia como a das arvores e das fontes; mas o meu silencio acolhe como uma musica indecisa, o meu socego affaga como o torpor de uma briza.

Que tens tu", ella disse, "que te ligue à vida? O amor não te busca, a glória não te procura, o poder não te encontra. A casa, que herdaste, herdaste em ruínas. As terras, que recebeste, tinha a geada queimado as suas primícias e o sol ardido suas promessas. Nunca viste, se não secco, o poço da tua quinta. Apodrecem, antes de as verem, as folhas nos teus tanques. As hervas ruins cobriam as aleas e as alamedas, por onde os teus pés nunca passaram."

"Mas no meu dominio, onde só a noite reina, terás a consolação, porque não terás esperança; terás o esquecimento, porque não terás o desejo; terás o repouso, porque não terás a vida."

E mostrou-me como era steril a esperança de melhores dias, quando não se nascera com a alma, em que os dias bons se obtivessem. Mostrou-me como o sonho não consola, porque a vida doi mais quando se accorda. Mostrou-me como o somno não repousa, porque o habitam phantasmas, sombras das cousas, rastos dos gestos, embryões mortos dos desejos, despojos do naufragio de viver.

E, assim dizendo, dobrara de vagar, mais demorada do que nunca, os seus tapetes, onde meus olhos se tentavam, as suas sedas, que a minha alma cobiçava, os damascos dos seus retabulos, onde só minhas lágrimas cahiam.

Porque has de tentar ser como os outros, se estás condemnado a ti? Para que has de rir, se, quando ris, a tua propria alegria sincera é falsa, porque nasce de te esquecer de quem és? Para que has de chorar, se sentes que de nada te serve, e choras mais as lagrimas não te consolarem, que porque lágrimas te consolem? 

Se és feliz quando ris, quando ris venci; se então és feliz porque te não lembras de quem és, quão mais feliz serás comigo, onde não mais te lembrarás de nada? Se descansas perfeitamente, se accasos dormes sem sonhar, como não descansarás no meu leito, te elevas, porque vês a beleza, e te esquece de ti e da vida, como não te elevarás no meu palacio, cuja beleza nocturna não soffre discordancia, nem edade, nem comparação; nas minhas salas onde nenhum vento pertuba os reposteiros, nenhum pó cobre os espaldares, nenhuma luz desbota, pouco a pouco, os veludos e os estofos, nenhum tempo amarellece a brancura dos ornatos brancos?

Vem ao meu carinho, que não soffre mudança; ao meu amor, que não tem cessação! Bebe da minha taça, que nunca se exgotta, o nectar supremo que não enjoa nem amarga, que não desgosta nem enebria. Contempla, da janella do meu castello, não o luar e o mar, que são cousas belas e por isso imperfeitas; mas a noite vasta e materna, os esplendor indivisivo do abysmo profundo!

Nos meus braços esquecerás o próprio caminho doloroso que te trouxe a elles. Contra o meu seio não sentirás mais o proprio amor que que fez com que o buscasses! Senta-te ao meu lado, no meu throno, e és para sempre o imperador indesthronavel do mysterio e do graal, coexistes com os deuses e com os destinos, em não seres nada, em não teres aquem e além, em não precisares nem do que te sobre, nem do que te falte, nem sequer mesmo do que te baste.

Serei tua esposa materna, tua irmã gemea encontrada. E casadas comigo todas as tuas angustias, reservado a mim tudo o que em ti procuravas e não tinhas, Tu proprio te perderás na minha substancia mystica, na minha existencia negada, no meu seio onde as cousas se apagam, no meu seio onde as almas se abysmam, no meu seio onde os deuses se desvanecem.

Senhor Rei do Desapego e da Renuncia, Imperador da Morte e do Naufragio, sonho vivo errando, faustuoso, entre as ruinas e as estradas do mundo! 

Senhor rei da desesperança entre pompas, dono doloroso dos palacios que o não satisfazem, mestre dos cortejos e dos apparatos que não conseguem apagar a vida!

Senhor Rei erguido dos tumulos, que vistes na noite e ao luar, contar a tua vida às vidas, pagem dos lyrios desfolhados, arauto imperial da frieza dos marfins!

Senhor Rei Pastor das Vigilias, cavalleiro andante das Angustias, sem gloria e sem dama ao luar das estradas, senhor nas florestas nas escarpas, perfil mudo, de viseira cahida, passando nos valles, incomprehendido pelas aldeias, chasqueado pelas villas, desprezado nas cidades!

Senhor Rei que a Morte sagrou seu, pallido e absurdo, esquecido e desconhecido, reinando entre pedras foscas e veludos velhos, no seu throno ao fim do possivel, com a sua côrte irreal cercando-o, sombras, e a sua milicia phantastica, guardando-o, mysteriosa e vazia.

Trazei pagens; trazei virgens; trazei servos e servas, as taças, as salvas e as grinaldas para o festim a que a morte assiste! Trazei-as e vinde de negro, com a cabeça coroada com de myrtos.

Mandragora seja o que tragaes nas taças, nas selvas, e as grinaldas sejam de violetas das flores tristes que lembrem a tristeza.

Vae o Rei a jantar com a Morte, no seu palácio antigo, à beira do lago, entre as montanhas, longe da vida, alheio ao mundo.

Uma briza de attenção percorre as alas.
Eil-o que vae chegar, com ar morte que ninguem vê e a (...) que não chega nunca.

Arautos, tocae! Attendei!

A Morte é o triumpho da vida!

Teu amor pelas cousas sonhadas era o teu desprezo pelas cousas vividas.

Rei-Virgem que desprezaste o amor, 
Rei-Sombra que desdenhaste a luz, 
Rei-Sonho que não quizeste a vida!

Entre o estrepito surdo de cymbalos e atabales, a sombra te aclama imperador!

Luz no occaso o teu advento, a estas regiões onde a morte rege.

Coroaram-te com flores mysteriosas, de cores ignotas, grinalda absurda que te cabe como a um deus deposto.

... Teu purpureo culto do sonho, fausto da ante-câmara da Morte. 

Hetarios impossiveis do abysmo.

Tocae arautos, do alto das ameias, saudando esta grande madrugada!

O Rei da Morte vae chegar ao seu dominio!

Flores de abysmo, rosas negras, cravos de côr branca do luar, papoulas de um vermelho que tem luz.

Bernardo Soares - Livro do Desassossego.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

E...


O meu orgulho lapidado por cegos e a minha desilusão pisada por mendigos.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O Andarilho.


Eu já disse quem sou Ele.
Meu desnome é Andaleço.
Andando devagar eu atraso o final do dia.
Caminho por beiras de rios conchosos.
Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco.
Carrego latas furadas, pregos, papéis usados.
(Ouço arpejos de mim nas latas tortas.)
Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita.
Os loucos me interpretam.
A minha direção é a pessoa do vento.
Meus rumos não têm termômetro.
De tarde arborizo pássaros.
De noite os sapos me pulam.
Não tenho carne de água.
Eu pertenço de andar atoamente.
Não tive estudamento de tomos.
Só conheço as ciências que analfabetam.
Todas as coisas têm ser?
Aromas de jacintos me infinitam.
E estes ermos me somam.

(Adaptação do poema de Manoel de Barros)

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Ah...


Não é nos Largos campos ou nos jardins grandes que vejo chegar a primavera. É nas poucas árvores pobres de um largo pequeno da cidade. Ali a verdura destaca como uma dádiva e é alegre como uma boa tristeza.

Amo esses largos solitários, intercalados entre ruas de pouco trânsito, e eles mesmos sem mais trânsito que as ruas. São clareiras inúteis, coisas que esperam, entre tumultos longínquos. São de aldeia na cidade.

Passo por eles, subo qualquer das ruas suas afluentes, depois desço de novo essa rua, para a eles regressar. Visto do outro lado é diferente, mas a mesma paz deixa dourar de saudade súbita - sol no ocaso - o lado que não vira na ida.

Tudo é inútil, e eu o sinto como tal. Quanto vivi se me esqueceu como se o ouvira distraído. Quanto serei me não lembra como se o tivera vivido e esquecido.

Um ocaso de mágoa leve paira vago em meu torno. Tudo esfria, não porque esfrie, mas porque entrei numa rua estreita e o largo cessou.

Estou liberto e perdido.

Sinto. A Febre estia. Sou eu.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Derramado.



Quem sou eu para mim? Só uma sensação minha.
O meu coração esvazia-se sem querer, como um balde roto. Pensar? Sentir? Como tudo cansa se é uma coisa definida!


domingo, 9 de agosto de 2009

Numa aldeia dentro de mim.


Há sossegos do campo na cidade. Há momentos, sobretudo nos meios-dias de estio, em que, nesta Lisboa luminosa, o campo, como um vento, nos invade. E aqui mesmo, na Rua dos Douradores, temos o bom sono.

Que bom à alma ver calar, sob um sol alto quieto, estas carroças com palha, estes caixotes por fazer, estes transeuntes lentos, de aldeia transferida! Eu mesmo, olhando-os da janela do escritório, onde estou só, me transmuto: estou numa vila quieta da província, estagno numa aldeola incógnita, e porque me sinto outro sou feliz.

Bem sei: se ergo os olhos, está diante de mim a linha sórdida da casaria, as janelas por lavar de todos os escritórios da Baixa, as janelas sem sentido dos andares mais altos onde ainda se mora, e, ao alto, no angular das trapeiras, a roupa de sempre, ao sol entre vasos e plantas. Sei isto, mas é tão suave a luz que doura tudo isto, tão sem sentido o ar calmo que me envolve, que não tenho razão sequer visual para abdicar da minha aldeia postiça, da minha vila de província onde o comércio é um sossego.

Bem sei, bem sei... Verdade seja que é a hora de almoço, ou de repouso, ou de intervalo. Tudo vai bem pela superfície da vida. Eu mesmo durmo, ainda que me debruce da varanda, como se fosse a amurada de um barco sobre uma paisagem nova. Eu mesmo nem cismo, como se estivesse na província. E, subitamente, outra coisa me surge, me envolve, me comanda: vejo por detrás do meio-dia da vila toda a vida em tudo da vila; vejo a grande felicidade estúpida da vida doméstica, a grande felicidade estúpida da vida nos campos, a grande felicidade estúpida do sossego na sordidez. Vejo, porque vejo. Mas não vi e desperto. Olho em roda, sorrindo, e, antes de mais nada, sacudo dos cotovelos do fato, infelizmente escuro, todo o pó do apoio da varanda, que ninguém limpou, ignorando que teria um dia, um momento que fosse, que ser a amurada sem pó possível de um barco singrando num turismo infinito.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Só.


Não sei porquê - noto-o subitamente - estou sozinho no escritório. Já, indefinidamente, o pressentira. Havia em qualquer aspecto da minha consciência de mim uma amplitude de alívio, um respirar mais fundo de pulmões diversos.

É esta uma das mais curiosas sensações que nos pode ser dada pelo acaso dos encontros e das faltas: a de estarmos sós numa casa ordinariamente cheia, ruidosa ou alheia. Temos, de repente, uma sensação de posse absoluta, de domínio fácil e largo, de amplitude - como disse de alívio e sossego.

Que bom estar só largamente! Poder falar alto connosco, passear sem estorvo de vistas, repousar para trás num devaneio sem chamamento! Toda casa se torna um campo, toda sala tem a extensão de uma quinta.

Ah, mas reconheço, naquele passo na escada, subindo até mim não sei quem, o alguém que vai interromper a minha solidão espairecida. Vai ser invadido pelos bárbaros o meu império implícito. Não é que o passo me diga quem é que vem, nem que me lembre o passo deste ou daquele que eu conheça. Há um mais surdo instinto na alma que me faz saber que é para aqui que vem o que sobe, por enquanto só passos, na escada que subitamente vejo, porque penso nele que a sobe. Sim, é um dos empregados. Pára, a porta ouve-se, entra. Vejo-o todo. E diz-me, ao entrar: "Sozinho, sr. Soares?" E eu respondo: "Sim, já há tempo... " E ele então diz, descascando-se do casaco com o olhar no outro, o velho, no cabide: "Grande maçada a gente estar aqui só, sr. Soares, e de mais a mais..." "Grande maçada, não há dúvida", respondo eu. "Até dá vontade de dormir", diz ele, já de casaco roto, e encaminhando-se para a secretária. "E dá", confirmo, sorridente. Depois, estendendo a mão para a caneta esquecida, reentro, gráfico na saúde anónima da vida normal.

Livro do Desassossego - Bernardo Soares.
Foto: Porto do Rio de Janeiro.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Estuans Interius.




Queimando por dentro
com veemente ira,
na amargura,
falei para min mesmo:
feito de matéria,
da cinza dos elementos,
sou com a folha
com quem brincam os ventos.

Se é este o caminho
do homem sábio,
construir sobre a pedra
as fundações da casa,
então sou um louco comparável
ao rio que corre,
eu que em seu curso
nunca se altera

Sou levado
como um navio sem piloto,
como através do ar
um pássaro a deriva;
nenhum vinculo me prende,
nenhuma chave me aprisiona,
busco meus semelhantes,
e me junto aos insensatos.

Meu coração pesado
é um fardo para mim;
o divertir-se é agradável
e mais doce que o favo de mel;
onde quer que Vênus impere,
o trabalho suave,
ela nunca habita
em corações indolentes

Meu caminho é amplo
como o quer minha juventude,
entrego-me aos meus vícios,
esquecido das virtudes,
mais ávido de volúpias
do que de salvação,
morta minh’alma
só minha pele me importa.
Tradução de Estuans Interius
Canção contida em Carmina Burana.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Estilhaçou-me.


Senti-me inquieto já. De repente, o silêncio deixara de respirar.
Súbito, de aço, um dia infinito’ estilhaçou-se. Agachei-me, animal, sobre a mesa, com as mãos garras inúteis sobre a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara nos recantos e nas almas, e um som de montanha próxima desabara do alto, rasgando num grito sedas do abismo. Meu coração parou. Bateu-me a garganta. A minha consciência viu só um borrão de tinta num papel.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Estático.




Há mais de meia hora
Que estou sentado à secretária
Com o único intuito
De olhar para ela.
(Estes versos estão fora do meu ritmo.
Eu também estou fora do meu ritmo.)
Tinteiro grande à frente.
Canetas com aparos novos à frente.
Mais para cá papel muito limpo.
Ao lado esquerdo um volume da "Enciclopédia Britânica".
Ao lado direito —
Ah, ao lado direito
A faca de papel com que ontem
Não tive paciência para abrir completamente
O livro que me interessava e não lerei.

Quem pudesse sintonizar tudo isto!
(Álvaro de Campos)

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Outomno.


Depois que os últimos calores do estio deixavam de ser duros no sol baço, começava o outomno antes que viesse, numa leve tristeza, prolixamente indefinida, que parecia uma vontade de não sorrir do céu. Era um azul umas vezes mais claro, outras mais verde, da própria ausência de substância da cor alta; era uma espécie de esquecimento nas nuvens, púrpuras diferentes e esbatidas; era, não já um torpor, mas um tédio, em toda a solidão quieta por onde nuvens atravessam.
A entrada do verdadeiro outomno era depois anunciada por um frio dentro do não-frio do ar, por um esbater-se das cores que ainda se não haviam esbatido, por qualquer coisa de penumbra e de afastamento no que havia sido o tom das paisagens e o aspecto disperso das coisas. Nada ia ainda morrer, mas tudo, como que num sorriso que ainda faltava, se virava em saudade para a vida.
Vinha, por fim, o outono certo: o ar tornava-se frio de vento; soavam folhas num tom seco, ainda que não fossem folhas secas; toda a terra tomava a cor e a forma impalpável de um paul incerto. Descobria-se o que fora sorriso último, num cansaço de pálpebras, numa indiferença de gestos. E assim tudo quanto sente, ou supomos que sente, apertava, íntima, ao peito a sua própria despedida. Um som de redemoinho num átrio flutuava através da nossa consciência de outra coisa qualquer. Aprazia convalescer para sentir verdadeiramente a vida.
Mas as primeiras chuvas de inverno, vindas ainda no outomno já duro, lavavam estas meias tintas como sem respeito. Ventos altos chiando em coisas paradas, barulhando coisas presas, arrastando coisas móveis, erguiam, entre os brados irregulares da chuva, palavras ausentes de protesto anónimo, sons tristes e quase raivosos de desespero sem alma.
E por fim o outono cessava, a frio e cinzento. Era um outomno de inverno o que vinha agora, um pó tornado lama de tudo, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa do que o frio do inverno traz de bom - verão duro findo, primavera por chegar, outomno definindo-se em inverno enfim. E no ar alto, por onde os tons baços já não lembravam nem calor nem tristeza, tudo era propício à noite e à meditação indefinida.
Assim era tudo para mim antes que o pensasse. Hoje, se o escrevo, e porque o lembro. O outomno que tenho é o que perdi.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Memorial em Sombras.


Depois dos dias todos de chuva, de novo o céu traz o azul, que escondera, aos grandes espaços do alto. Entre as ruas, onde as poças dormem como charcos do campo, e a alegria clara que esfria no alto, há um contraste que torna agradáveis as ruas sujas e primaveril o céu de inverno baço. É domingo e não tenho que fazer. Nem sonhar me apetece, de tão bem que está o dia. Gozo-o com uma sinceridade de sentidos a que a inteligência se abandona.
Passeio como um caixeiro liberto. Sinto-me velho, só para ter o prazer de me sentir rejuvenescer.
Na grande praça dominical há um movimento solene de outra espécie de dia. Em São Domingos há a saída de uma missa, e vai principiar outra. Vejo uns que saem e os que ainda não entraram, esperando por alguns que não estão vendo quem sai.
Todas estas coisas não têm importância. São, como tudo no comum da vida, um sono dos mistérios e das ameias, e eu olho, como um arauto chegado, a planície da minha meditação.
Outrora, criança, eu ia a esta mesma missa, ou porventura à outra, mas devia ser a esta. Punha, com a devida consciência, o meu único fato melhor, e gozava tudo - até o que não tinha razão de gozar. Vivia por fora e o fato era limpo e novo. Que mais quer quem tem que morrer e o não sabe pela mão da mãe?
Outrora gozava tudo isto, por isso é só agora, talvez, que compreendo quanto o gozava. Entrava para a missa como para um grande mistério, e saía da missa como para uma clareira. E assim é que verdadeiramente era, e ainda verdadeiramente é. Só o ser que não crê e é adulto, com alma que recorda e chora, são a ficção e o transtorno, o desalinho e a lajem fria.
Sim, o que eu sou fora insuportável, se eu não pudesse lembrar-me do que fui. E esta multidão alheia que continua ainda a sair da missa, e o princípio da multidão possível que começa a chegar para entrar para a outra - tudo isto são como barcos que passam por mim, rio lento, sob as janelas abertas do meu lar erguido sobre a margem.
Memórias, domingos, missas, prazer de haver sido, milagre do tempo que ficou por ter passado, e não esquece nunca porque foi meu... Diagonal absurda das sensações normais, som súbito de carruagem de praça que soa rodas no fundo dos silêncios ruidosos dos automóveis, e de qualquer modo, por um paradoxo maternal do tempo, subsiste hoje, aqui mesmo, entre o que sou e o que perdi, no antero olhar de mim que sou eu...

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Ameno.



- O seu olhar tem qualquer coisa de música tocada a bordo dum barco, no meio misterioso de um rio com florestas na margem oposta...
- Não diga que é fria uma noite de luar. Abomino as noites de luar... Há quem costume realmente tocar música nas noites de luar... - Isso também é possível... E é lamentável, está claro... Mas o seu olhar tem realmente o desejo de ser saudoso de qualquer coisa... Falta-lhe o sentimento que exprime... Acho na falsidade da sua expressão uma quantidade de ilusões que tenho tido...
- Creia que sinto às vezes o que digo, e até, apesar de mulher, o que digo com o olhar...
- Não está sendo cruel para consigo própria? Nós sentimos realmente o que pensamos que estamos sentindo? Esta nossa conversa, por exemplo, tem visos de realidade? Não tem. Num romance não seria admitida.
- Com muita razão... Eu não tenho a absoluta certeza de estar falando consigo, repare... Apesar de mulher, criei-me um dever de ser estampa de um livro de impressões de um desenhista doido... Tenho em mim detalhes exageradamente nítidos... Dá um pouco, bem sei, a impressão de realidade excessiva e um pouco forçada... Acho que a única coisa digna de uma mulher contemporânea é este ideal de ser estampa. Quando eu era criança queria ser a rainha dum naipe qualquer num baralho de cartas antigo que havia em minha casa... Achava esse mister de uma heráldica realmente compassiva... Mas quando se é criança, tem-se aspirações morais destas... Só depois, na idade em que as nossas aspirações são todas imorais, é que pensamos nisso a serto...
- Eu, como nunca falo a crianças, creio no instinto artista delas... Sabe, enquanto estou falando, agora mesmo, eu estou querendo penetrar o íntimo sentido dessas coisas que me estava dizendo... Perdoa-me?
- Não de todo... Nunca se deve devassar os sentimentos que os outros fingem que têm. São sempre demasiadamente íntimos... Acredite que me dói realmente estar-lhe fazendo estas confidências íntimas, que, se bem que todas elas falsas, representam verdadeiros farrapos da minha pobre alma... No fundo, acredite, o que somos de mais doloroso é o que não somos realmente, e as nossas maiores tragédias passam-se na nossa ideia de nós.
- Isso é tão verdadeiro... Para que dizê-lo? Feriu-me. Para que tirar à nossa conversa a sua irrealidade constante? Assim é quase uma conversa possível, passada a uma mesa de chá, entre uma mulher linda e um imaginador de sensações.
- Sim, sim... É a minha vez de pedir perdão... Mas olhe que eu estava distraída e não reparei realmente em que tinha dito uma coisa justa... Mudemos de assunto... Que tarde que é sempre!... Não se torne a zangar... Olhe que esta minha frase não tem sentido absolutamente nenhum...
- Não me peça desculpas, não repare em que estamos falando... Toda a boa conversa deve ser um monólogo de dois... Devemos, no fim, não poder ter a certeza se conversámos realmente com alguém ou se imaginámos totalmente a conversa... As melhores e as mais íntimas conversas, e sobretudo as menos moralmente instrutivas, são aquelas que os romancistas têm entre duas personagens das suas novelas... Como exemplo...
- Por amor de Deus! Não ia decerto citar-me um exemplo... Isso só se faz nas gramáticas; não sei se se recorda que até nunca as lemos.
- Leu alguma vez uma gramática?
- Eu nunca. Tive sempre uma aversão profunda a saber como se dizem as coisas... A minha única simpatia, nas gramáticas, ia para as excepções e para os pleonasmos... Escapar às regras e dizer coisas inúteis resume bem a atitude essencialmente moderna... Não é assim que se diz?...
- Absolutamente... O que tem de antipático nas gramáticas (já reparou na deliciosa impossibilidade de estarmos falando neste assunto?) - o que há de mais antipático nas gramáticas é o verbo, os verbos... São as palavras que dão sentido às frases... Uma frase honesta deve sempre poder ter vários sentidos... Os verbos!... Um amigo meu que se suicidou - cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo - tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir os verbos...
- Ele por que se suicidou?
- Espere, ainda não sei... Ele pretendia descobrir e fixar o modo de não completar as frases sem parecer fazê-lo. Ele costumava dizer-me que procurava o micróbio da significação... Suicidou-se, é claro, porque um dia reparou na responsabilidade imensa que tomara sobre si... A importância do problema deu-lhe cabo do cérebro... Um revólver e...
- Ah, não... Isso de modo algum... Não vê que não podia ser um revólver?... Um homem desses nunca dá um tiro na cabeça... O senhor pouco se entende com os amigos que nunca teve... É um defeito grande, sabe?... A minha melhor amiga - uma deliciosa rapaz que eu inventei -
- Dão-se bem?- Tanto quanto é possível... Mas essa rapariga, não imagina,


(...)

domingo, 14 de junho de 2009

Isolamento.


Mas a exclusão, que me impus, dos fins e dos movimentos da vida; a ruptura, que procurei, do meu contacto com as coisas levou-me precisamente àquilo a que eu procurava fugir. Eu não queria sentir a vida, nem tocar nas coisas, sabendo, pela experiência do meu temperamento em contágio do mundo, que a sensação da vida era sempre dolorosa para mim. Mas ao evitar esse contacto, isolei-me, e, isolando-me, exacerbei a minha sensibilidade já excessiva. Se fosse possível cortar de todo o contacto com as coisas, bem iria à minha sensibilidade. Mas esse isolamento total não pode realizar-se. Por menos que eu faça, respiro; por menos que aja, movo-me. E, assim, conseguindo exacerbar a minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os factos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem comocatástrofes. Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incómodo, para o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre o horror de viver ali.
Nunca encarei o suicídio como uma solução, porque eu odeio a vida por amor a ela. Levei tempo a convencer-me deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando me convenço de qualquer coisa, porque o convencimento é em mim sempre a perda de uma ilusão.
Matei a vontade a analisá-la. Quem me tornara a infância antes da análise, ainda que antes da vontade!
Nos meus parques, sono morto, a sonolência dos tanques ao sol-alto, quando os rumores dos insectos chusmam na hora e me pesa viver, não como uma mágoa, mas como uma dor física por concluir.
Palácios muito longe, parques absortos, a estreiteza das áleas ao longe,a graça morta dos bancos de pedra para os que foram - pompas mortas, graça desfeita, ouropel perdido.
Meu anseio que esqueço, quem me dera recuperar a mágoa com que te sonhei.

sábado, 30 de maio de 2009

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O gládio de um relâmpago frouxo volteou sombriamente no quarto largo.
E o som a vir, suspenso um hausto amplo, retumbou, emigrando profundo.
O som da chuva chorou alto, como carpideiras no intervalo das falas. Os pequenos sons destacaram-se cá dentro, inquietos.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Trovoada.



Como nos dias em que a trovoada se prepara e os ruídos da rua falam alto com uma voz solitária.
A rua franziu-se de luz intensa e pálida, e o negrume baço tremeu, de leste a oeste do mundo, com um estrondo feito de escangalhamentos ecoantes... A tristeza dura da chuva bruta piorou o ar negro de intensidade feia. Frio, morno, quente - tudo ao mesmo tempo -, o ar em toda a parte era errado. E, a seguir, pela ampla sala uma cunha de luz metálica abriu brecha nos repousos dos corpos humanos, e, com o sobressalto gelado, um pedregulho de som bateu em toda a parte, esfacelando-se com silêncio duro. O som da chuva diminui como uma voz de menos peso. O ruído das ruas diminui angustiantemente. Nova luz, de um amarelado rápido, tolda o negrume surdo, mas houve agora uma respiração possível antes que o punho do som trémulo ecoasse súbito doutro ponto; como uma despedida zangada, a trovoada começava a aqui não estar com um sussurro arrastado e findo, sem luz na luz que aumentava, o tremor da trovoada acalmava nos largos longes - rodava em Almada...
Uma súbita luz formidável estilhaçou-se . Tudo estacou. Os corações pararam um momento. Todos são pessoas muito sensíveis. O silêncio aterra como se houvera morte. O som da chuva que aumenta alivia como lágrimas de tudo. Há chumbo.

domingo, 24 de maio de 2009

O Coração, se pudesse pensar, pararia...

Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido - sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal. Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.
Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia.
Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.

sábado, 16 de maio de 2009

Não...


Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim.
Letras: Bernardo Soares.
Imagem: Morte 404.

domingo, 10 de maio de 2009

Do Subterrâneo.


Sou um homem doente... Sou mau. Nada tenho de simpático. Julgo estar doente do fígado, embora não o perceba nem saiba ao certo onde reside o meu mal. Não me trato, e nunca me tratei, por muito que considere a medicina e os médicos, pois sou altamente surpersticioso, pelo menos o bastante para ter fé na medicina. (Possuo instrução suficiente para não ser surpersticioso e, no entanto, sou... ) Não, se não me trato é por pura maldade; é assim mesmo. O senhor não compreenderá isto, por acaso? Pois compreendo-o e basta. Não há dúvida de que eu não conseguiria explicar a quem prejudico neste caso, com a minha maldade. Compreendo perfeitamente que, não me tratando, não prejudico a ninguém, nem sequer os médicos; sei melhor do que ninguém que só a mim próprio prejudico. Não importa; se não me trato é por maldade. Tenho o fígado doente? Pois que rebente!

Memórias do Subterrâneo
Fiódor Dostoievskiy.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

-


O desgosto de não encontrar nada encontrei comigo pouco a pouco...
Esforcei-me porque todos os meus pensamentos, todos os capítulos quotidianos da minha experiência me fornecessem apenas sensações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orientei essa estética para puramente individual. Fi-la minha apenas.
Reduzi ao mínimo o meu contacto com os outros. Fiz o que pude para perder toda a afeição à vida. Do próprio desejo da glória lentamente me despi, como quem cheio de cansaço se despe para repousar.
Envelheci pelas sensações... Gastei-me gerando os pensamentos... E a minha vida passou a ser uma febre metafísica, sempre descobrindo sentidos ocultos nas coisas, brincando com o fogo das analogias misteriosas, procrastinando a lucidez integral, a síntese normal para se denegrir [?].
Caí numa complexa indisciplina cerebral, cheia de indiferenças. Onde me refugiei? Tenho a impressão de que não me refugiei em parte nenhuma.
Abandonei-me, mas não sei a quê.
Concentrei e limitei os meus desejos, para os poder requintar melhor.
Para se chegar ao infinito, e julgo que se pode lá chegar, é preciso termos um porto, um só, firme, e partir dali para Indefinido.
Hoje sou ascético na minha religião de mim. Uma chávena de café, um cigarro e os meus sonhos substituem bem o universo e as suas estrelas, o trabalho, o amor, até a beleza e a glória. Não tenho quase necessidade de estímulos. Ópio tenho-o eu na alma.
Que sonhos tenho? Não sei. Forcei-me por chegar a um ponto onde nem saiba já em que penso, com que sonho, o que visiono. Parece-me que sonho cada vez de mais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o invisionável.
Não faço teorias a respeito da vida. Se ela é boa ou má não sei, não penso. Para meus olhos é dura e triste, com sonhos deliciosos de permeio. Que me importa o que ela é para os outros!
A vida dos outros só me serve para eu lhes viver, a cada um a vida que me parece que lhes convém no meu sonho.
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Texto: Livro do Desassossego - Bernardo Soares;
Desenho: Morte 404.

sábado, 25 de abril de 2009

Meto-me Para Dentro...



Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,

A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito.
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.

Alberto Caeiro - Guardador de Rebanhos.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Quem me dera...


"Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas ...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco."
(Do Guardador de Rebanhos)

domingo, 12 de abril de 2009

Há muito tempo que não existo.


Há muito tempo que não falo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não repousa: no apodrecimento há fermentação.
Há muito tempo que não só não falo, mas nem sequer existo. Creio que mal sonho. As ruas são ruas para mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para ele, mas não direi bem sem me distrair: por detrás estou, em vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por detrás do trabalho.
Há muito tempo que não existo. Estou sossegadíssimo. Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respirar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada. Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã desperte para mim mesmo, e reate o curso da minha existência própria. Não sei se, com isso, serei mais feliz ou menos. Não sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sobre a encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de janelas, num revérbero alto de fogo frio. À roda desses olhos de chama dura toda a encosta é suave do fim do dia. Posso ao menos sentir-me triste, e ter a consciência de que, com esta minha tristeza, se cruzou agora – visto com ouvido - o som súbito do eléctrico que passa, a voz casual dos conversadores jovens, o sussurro esquecido da cidade viva.
Há muito tempo que não sou eu.

sábado, 11 de abril de 2009

A child hand's playing with cotton-reels, etc.



Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para dentro de mim, pude esquecer-me na visão do seu movimento.
Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longínquo. Nas minhas próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumavam - quase na distância das minhas paisagens sonhadas, tinham uma doçura de sonho em relação às outras partes da paisagem - uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar.
A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me ainda, e só na minha morte me abandonará. Não alinho hoje nas minhas gavetas carros de linha e peões de xadrez - com um bispo ou um cavalo acaso sobressaindo – mas tenho pena de o não fazer.., e alinho na minha imaginação, confortavelmente, como quem no inverno se aquece a uma lareira, figuras que habitam, e são constantes e vivas, na minha vida interior. Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas.
Alguns passam dificuldades, outros têm uma vida boémia, pitoresca e humilde. Há outros que são caixeiros-viajantes. (Poder sonhar-me caixeiro-viajante foi sempre uma das minhas grandes ambições – irrealizável infelizmente!) Outros moram em aldeias e vilas lá para as fronteiras de um Portugal dentro de mim; vêm à cidade, onde por acaso os encontro e reconheço, abrindo-lhes os braços, numa atracção (6)... E quando sonho isto, passeando no meu quarto, falando alto, gesticulando.., quando sonho isto, e me visiono encontrando-os, todo eu me alegro, me realizo, me pulo, brilham-me os olhos, abro os braços e tenho uma felicidade enorme, real.
Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!
O que eu sinto quando penso no passado que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da vida da minha infância ida,... isso mesmo não atinge o fervor doloroso e trémulo com que choro sobre não serem reais as figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras secundárias que me recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na minha pseudovida, ao virar uma esquina da minha visionação, ao passar por um portão numa rua que subi e percorri por esse sonho fora.
A raiva de a saudade não poder reavivar e reerguer nunca é tão lacrimosa contra Deus, que criou impossibilidades, do que quando medito que os meus amigos de sonho, com quem passei tantos detalhes de uma vida suposta, com quem tantas conversas iluminadas, em cafés imaginários, tenho tido, não pertenceram, afinal, a nenhum espaço onde pudessem ser, realmente, independentes da minha consciência deles!
Oh, o passado morto que eu trago comigo e nunca esteve senão comigo! As flores do jardim da pequena casa de campo e que não existiu senão em mim. As hortas, os pomares, o pinhal, da quinta que foi só um meu sonho! As minhas vilegiaturas supostas, os meus passeios por um campo que nunca existiu! As árvores de à beira da estrada, os atalhos, as pedras, os camponeses que passam... tudo isto, que nunca passou de um sonho, está guardado em minha memória a fazer de dor e eu, que passei horas a sonhá-los, passo horas depois a recordar tê-los sonhado e é, na verdade, saudade que eu tenho, um passado que eu choro, uma vida-real morta que fito, solene no seu caixão.
Há também as paisagens e as vidas que não foram inteiramente interiores. Certos quadros, sem subido relevo artístico, certas oleogravuras que havia em paredes com que convivi muitas horas - passam a realidade dentro de mim. Aqui a sensação era outra, mais pungente e triste. Ardia-me não poder estar ali, quer eles fossem reais ou não. Não ser eu, ao menos, uma figura a mais desenhada ao pé daquele bosque ao luar que havia numa pequena gravura dum quarto onde dormi já não em pequeno!
Não poder eu pensar que estava ali oculto, no bosque à beira do rio, por aquele luar eterno (embora mal desenhado), vendo o homem que passa num barco por baixo do debruçar-se de um salgueiro! Aqui o não poder sonhar inteiramente doía-me. As feições da minha saudade eram outras. Os gestos do meu desespero eram diferentes. A impossibilidade que me torturava era de outra ordem de angústia. Ah, não ter tudo isto um sentido em Deus, uma realização conforme o espírito de nossos desejos, não sei onde, por um tempo vertical, consubstanciado com a direcção das minhas saudades e dos meus devaneios! Não haver, pelo menos só para mim, um paraíso feito disto! Não poder eu encontrar os amigos que sonhei, passear pelas ruas que criei, acordar, entre o ruído dos galos e das galinhas e o rumorejar matutino da casa, na casa de campo em que eu me supus... e tudo isto mais perfeitamente arranjado por Deus, posto naquela perfeita ordem para existir, na precisa forma para eu o ter que nem os meus próprios sonhos atingem senão na falta de uma dimensão do espaço intimo que entretém essas pobres realidades...Ergo a cabeça de sobre o papel em que escrevo... E cedo ainda. Mal passa o meio-dia e é domingo. O mal da vida, a doença de ser consciente, entra com o meu próprio corpo e perturba-me. Não haver ilhas para os inconfortáveis, alamedas vetustas, inencontráveis de antes, para os isolados no sonhar! Ter de viver e, por pouco que seja, de agir; ter de roçar pelo facto de haver outra gente, real também, na vida! Ter de estar aqui escrevendo isto, por me ser preciso à alma fazê-lo, e, mesmo isto, não poder sonhá-lo apenas, exprimi-Lo sem palavras, sem consciência mesmo, por uma construção de mim próprio em música e esbatimento, de modo que me subissem as lágrimas aos olhos só de me sentir expressar-me, e eu fluísse, como um rio encantado, por lentos declives de mim próprio, cada vez mais para o inconsciente e o Distante, sem sentido nenhum excepto Deus.
Bernardo Soares
Ajudante de Guarda-Livros