"Teu amor pelas cousas sonhadas era teu desprezo pelas cousas vividas."
terça-feira, 4 de agosto de 2009
Só.
Não sei porquê - noto-o subitamente - estou sozinho no escritório. Já, indefinidamente, o pressentira. Havia em qualquer aspecto da minha consciência de mim uma amplitude de alívio, um respirar mais fundo de pulmões diversos.
É esta uma das mais curiosas sensações que nos pode ser dada pelo acaso dos encontros e das faltas: a de estarmos sós numa casa ordinariamente cheia, ruidosa ou alheia. Temos, de repente, uma sensação de posse absoluta, de domínio fácil e largo, de amplitude - como disse de alívio e sossego.
Que bom estar só largamente! Poder falar alto connosco, passear sem estorvo de vistas, repousar para trás num devaneio sem chamamento! Toda casa se torna um campo, toda sala tem a extensão de uma quinta.
Ah, mas reconheço, naquele passo na escada, subindo até mim não sei quem, o alguém que vai interromper a minha solidão espairecida. Vai ser invadido pelos bárbaros o meu império implícito. Não é que o passo me diga quem é que vem, nem que me lembre o passo deste ou daquele que eu conheça. Há um mais surdo instinto na alma que me faz saber que é para aqui que vem o que sobe, por enquanto só passos, na escada que subitamente vejo, porque penso nele que a sobe. Sim, é um dos empregados. Pára, a porta ouve-se, entra. Vejo-o todo. E diz-me, ao entrar: "Sozinho, sr. Soares?" E eu respondo: "Sim, já há tempo... " E ele então diz, descascando-se do casaco com o olhar no outro, o velho, no cabide: "Grande maçada a gente estar aqui só, sr. Soares, e de mais a mais..." "Grande maçada, não há dúvida", respondo eu. "Até dá vontade de dormir", diz ele, já de casaco roto, e encaminhando-se para a secretária. "E dá", confirmo, sorridente. Depois, estendendo a mão para a caneta esquecida, reentro, gráfico na saúde anónima da vida normal.
Livro do Desassossego - Bernardo Soares.
Foto: Porto do Rio de Janeiro.
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