"Teu amor pelas cousas sonhadas era teu desprezo pelas cousas vividas."

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Paragem, zona



Tragam-me esquecimento em travessas!
Quero comer o abandono da vida!
Quero perder o habito de gritar para dentro.
Arre, já basta! Não sei o quê, mas já basta...
Então viver amanhã, hein?... E o que se faz de hoje?
Viver amanhã por ter adiado hoje?
Comprei por acaso um bilhete para esse espectaculo?
Que gargalhadas daria quem pudesse rir!
E agora apparece o eletrico – o de que eu estou á espera –
Antes fosse outro... Ter de subir já!
Ninguem me obriga, mas deixal-o passar, porquê?
Só deixando passar todos, e a mim mesmo, e á vida...
Que nausea no estomago real que é a alma consciente!
Que somno bom o ser outra pessoa qualquer...
Já comprehendo porque é que as creanças querem ser guarda-freios...
Não, não comprehendo nada...
Tarde de azul e ouro, alegria das gentes, olhos claros da vida...


Versos: Álvaro de Campos.
Foto: autor desconhecido, local: Galápagos.

domingo, 21 de novembro de 2010

manhã de domingo.



Desconcerto-me sob a luz suave de céu azul em que encontrei nessa manhã alta de domingo ao sair para fora.

É domingo em mim também. Essa beleza é sempre inédita pra mim, e através dela tento alcançar esquecimentos...

Caminhei sozinho logo que acordei, com meu chinelo gasto e roupa velha, através de passeios sinuosos e ladeiras desta Teresópolis para colecionar impressões desassossegadas e oblíqüas de tudo.


É domingo. Que tenho eu com a vida?

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

appontamento.



A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Cahiu pela escada excessivamente abaixo.
Cahiu das mãos da creada descuidada.
Cahiu, fêz-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.


Asneira? Impossivel? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.


Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que ha debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a creada d'elles fêz de mim.


Não se zangam com ella.
São tolerantes com ella.
O que eu era um vaso vasio?


Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si-mesmos, não conscientes d'elles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à creada involuntária.


Alastra a grande escadaria atapetada de estrêllas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou alli.

Versos: Álvaro de Campos
Fotografia: Anônimo (tokyotimes.org)

quinta-feira, 18 de novembro de 2010


Minha sensibilidade é uma chama ao vento que não se apaga.

Foto: Cidade de Chernobyl, Ucrânia. Autor desconhecido.

domingo, 14 de novembro de 2010

Abdicação.



Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

Versos: Fernando Pessoa.
Foto: Desconhecido.

domingo, 7 de novembro de 2010

intervallo desconexo.


Nesta página negra desenho, com minhas mãos incertas, os caminhos mais íntimos que me destino. São formas abstratas, sem sentidos, palavras simples e distantes que descrevem minha vida descontínua, minhas incoerências mais admiráveis, meu pequeno cotidiano, e as aléas, monstros, montanhas, e ruas desertas dos meus sonhos.

Neste blogue estão os rabiscos da minha inconsciência de mim. Traço-as num tédio diante do laptop, como um gato ao sol, e releio-as, por vezes, com um vago pasmo tardio, como o de me haver lembrado de uma coisa que sempre esquecera.

Quando cá estou, olho-me diante do espelho e vejo as salas especiais, recordadas por outrem em interstícios da figuração, onde me deleito analisando o que não sinto, e me examino como a um quadro na sombra.

Perdi, antes de nascer, o meu castelo antigo. Foram vendidas, antes que eu fosse, as tapeçarias [d]o meu palácio ancestral. O meu solar de antes da vida caiu em ruína, e só em certos momentos, quando o luar nasce em mim de sobre os juncos do rio, me esfria a saudade dos lados de onde o resto desdentado das paredes recorra negro contra o céu de azul escuro esbranquiçado a amarelo de leite.

Porque aqui é como se estivesse esfarrapado, com todas as minhas cicatrizes à mostra, e à repulsar.

sábado, 6 de novembro de 2010

meu olhar.



- Hoje, durante o meu passeio matinal, vi uma linda mulher… Meu Deus, que linda que ela era! (…)
- Sério, sr. Spinell? Descreva-ma então.
- Não, não posso! Dar-lhe-ia uma imagem imperfeita dela. Ao passar, mal a vi; na verdade, não a vi. Apercebi-me, porém, da sua sombra esfumada, e isso bastou para me excitar a imaginação e guardar dela uma imagem de beleza. Meu Deus, que linda imagem!
A mulher do sr. Klöterjahn sorriu.
- É essa a sua maneira de olhar para as mulheres bonitas, senhor Spinell?
- Sim, minha senhora, é; é muito melhor do que olhá-las fixamente na cara, com uma grosseira avidez da realidade, para no fim ficarmos com uma impressão falsa…

Texto: Thomaz Mann
Foto: Desconhecido