"Teu amor pelas cousas sonhadas era teu desprezo pelas cousas vividas."

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Marcha Fúnebre ao Rei Luiz II da Baviera.


Hoje, mais demorada do que nunca, veio a morte vender ao meu limiar. Deante de mim, mais demorada do que nunca, desdobrou os tapetes, as sedas, e os damascos, do seu esquecimento e da sua consolação. Sorria d'elles, por elogio, e não se importando que eu a visse. Mas quando eu tentava por me comprar, fallou-me que não os vendia. Não viera para que eu quizesse o que me mostrava; mas para que, por o que mostrava, a quizesse a ella. E, dos seus tapetes, disse-me que eram os que gosavam no seu palacio longínquo; das suas sedas, que outras se não trajavam no seu castello na sombra; dos seus damascos, que melhores ainda eram os que cobriam, toalhas, os retabulos da sua estancia para além do mundo.

O Apego natal, que me prendia ao meu limiar desvestido, com gesto suave desligou. "O teu lar" disse "não tem lume: para que queres tu ter um lar?" "A tua casa" disse "Não tem pão: para que te serve a tua meza?" "A tua vida" disse "não tem quem a acompanhe: para que te seduz a tua vida"?

"Eu sou" disse ela, "O lume das lareiras apagadas, o pão das mezas desertas, a companheira sollicita dos solitários e dos incomprehendidos. A glória que falta no mundo, é pompa no meu negro dominio. No meu imperio, o amor não cansa, porque soffra por ter; nem doe, porque canse de nunca ter tido. A minha mão pousa de leve nos cabellos dos que pensam, e elles esquecem; contra meu seio se encostam os que em vão esperavam, e elles enfim confiam."

"O amor que me teem", ella disse, "Não tem paixão que consuma; ciume que desvarie; esquecimento que deslustre. Amar-me é como uma noite de verão, quando os mendingos dormem ao relento, e parecem pedras à beira dos caminhos. Dos meus labios mudos não vem canto como o das sereias, nem melodia como a das arvores e das fontes; mas o meu silencio acolhe como uma musica indecisa, o meu socego affaga como o torpor de uma briza.

Que tens tu", ella disse, "que te ligue à vida? O amor não te busca, a glória não te procura, o poder não te encontra. A casa, que herdaste, herdaste em ruínas. As terras, que recebeste, tinha a geada queimado as suas primícias e o sol ardido suas promessas. Nunca viste, se não secco, o poço da tua quinta. Apodrecem, antes de as verem, as folhas nos teus tanques. As hervas ruins cobriam as aleas e as alamedas, por onde os teus pés nunca passaram."

"Mas no meu dominio, onde só a noite reina, terás a consolação, porque não terás esperança; terás o esquecimento, porque não terás o desejo; terás o repouso, porque não terás a vida."

E mostrou-me como era steril a esperança de melhores dias, quando não se nascera com a alma, em que os dias bons se obtivessem. Mostrou-me como o sonho não consola, porque a vida doi mais quando se accorda. Mostrou-me como o somno não repousa, porque o habitam phantasmas, sombras das cousas, rastos dos gestos, embryões mortos dos desejos, despojos do naufragio de viver.

E, assim dizendo, dobrara de vagar, mais demorada do que nunca, os seus tapetes, onde meus olhos se tentavam, as suas sedas, que a minha alma cobiçava, os damascos dos seus retabulos, onde só minhas lágrimas cahiam.

Porque has de tentar ser como os outros, se estás condemnado a ti? Para que has de rir, se, quando ris, a tua propria alegria sincera é falsa, porque nasce de te esquecer de quem és? Para que has de chorar, se sentes que de nada te serve, e choras mais as lagrimas não te consolarem, que porque lágrimas te consolem? 

Se és feliz quando ris, quando ris venci; se então és feliz porque te não lembras de quem és, quão mais feliz serás comigo, onde não mais te lembrarás de nada? Se descansas perfeitamente, se accasos dormes sem sonhar, como não descansarás no meu leito, te elevas, porque vês a beleza, e te esquece de ti e da vida, como não te elevarás no meu palacio, cuja beleza nocturna não soffre discordancia, nem edade, nem comparação; nas minhas salas onde nenhum vento pertuba os reposteiros, nenhum pó cobre os espaldares, nenhuma luz desbota, pouco a pouco, os veludos e os estofos, nenhum tempo amarellece a brancura dos ornatos brancos?

Vem ao meu carinho, que não soffre mudança; ao meu amor, que não tem cessação! Bebe da minha taça, que nunca se exgotta, o nectar supremo que não enjoa nem amarga, que não desgosta nem enebria. Contempla, da janella do meu castello, não o luar e o mar, que são cousas belas e por isso imperfeitas; mas a noite vasta e materna, os esplendor indivisivo do abysmo profundo!

Nos meus braços esquecerás o próprio caminho doloroso que te trouxe a elles. Contra o meu seio não sentirás mais o proprio amor que que fez com que o buscasses! Senta-te ao meu lado, no meu throno, e és para sempre o imperador indesthronavel do mysterio e do graal, coexistes com os deuses e com os destinos, em não seres nada, em não teres aquem e além, em não precisares nem do que te sobre, nem do que te falte, nem sequer mesmo do que te baste.

Serei tua esposa materna, tua irmã gemea encontrada. E casadas comigo todas as tuas angustias, reservado a mim tudo o que em ti procuravas e não tinhas, Tu proprio te perderás na minha substancia mystica, na minha existencia negada, no meu seio onde as cousas se apagam, no meu seio onde as almas se abysmam, no meu seio onde os deuses se desvanecem.

Senhor Rei do Desapego e da Renuncia, Imperador da Morte e do Naufragio, sonho vivo errando, faustuoso, entre as ruinas e as estradas do mundo! 

Senhor rei da desesperança entre pompas, dono doloroso dos palacios que o não satisfazem, mestre dos cortejos e dos apparatos que não conseguem apagar a vida!

Senhor Rei erguido dos tumulos, que vistes na noite e ao luar, contar a tua vida às vidas, pagem dos lyrios desfolhados, arauto imperial da frieza dos marfins!

Senhor Rei Pastor das Vigilias, cavalleiro andante das Angustias, sem gloria e sem dama ao luar das estradas, senhor nas florestas nas escarpas, perfil mudo, de viseira cahida, passando nos valles, incomprehendido pelas aldeias, chasqueado pelas villas, desprezado nas cidades!

Senhor Rei que a Morte sagrou seu, pallido e absurdo, esquecido e desconhecido, reinando entre pedras foscas e veludos velhos, no seu throno ao fim do possivel, com a sua côrte irreal cercando-o, sombras, e a sua milicia phantastica, guardando-o, mysteriosa e vazia.

Trazei pagens; trazei virgens; trazei servos e servas, as taças, as salvas e as grinaldas para o festim a que a morte assiste! Trazei-as e vinde de negro, com a cabeça coroada com de myrtos.

Mandragora seja o que tragaes nas taças, nas selvas, e as grinaldas sejam de violetas das flores tristes que lembrem a tristeza.

Vae o Rei a jantar com a Morte, no seu palácio antigo, à beira do lago, entre as montanhas, longe da vida, alheio ao mundo.

Uma briza de attenção percorre as alas.
Eil-o que vae chegar, com ar morte que ninguem vê e a (...) que não chega nunca.

Arautos, tocae! Attendei!

A Morte é o triumpho da vida!

Teu amor pelas cousas sonhadas era o teu desprezo pelas cousas vividas.

Rei-Virgem que desprezaste o amor, 
Rei-Sombra que desdenhaste a luz, 
Rei-Sonho que não quizeste a vida!

Entre o estrepito surdo de cymbalos e atabales, a sombra te aclama imperador!

Luz no occaso o teu advento, a estas regiões onde a morte rege.

Coroaram-te com flores mysteriosas, de cores ignotas, grinalda absurda que te cabe como a um deus deposto.

... Teu purpureo culto do sonho, fausto da ante-câmara da Morte. 

Hetarios impossiveis do abysmo.

Tocae arautos, do alto das ameias, saudando esta grande madrugada!

O Rei da Morte vae chegar ao seu dominio!

Flores de abysmo, rosas negras, cravos de côr branca do luar, papoulas de um vermelho que tem luz.

Bernardo Soares - Livro do Desassossego.

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