"Teu amor pelas cousas sonhadas era teu desprezo pelas cousas vividas."

sexta-feira, 8 de maio de 2009

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O desgosto de não encontrar nada encontrei comigo pouco a pouco...
Esforcei-me porque todos os meus pensamentos, todos os capítulos quotidianos da minha experiência me fornecessem apenas sensações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orientei essa estética para puramente individual. Fi-la minha apenas.
Reduzi ao mínimo o meu contacto com os outros. Fiz o que pude para perder toda a afeição à vida. Do próprio desejo da glória lentamente me despi, como quem cheio de cansaço se despe para repousar.
Envelheci pelas sensações... Gastei-me gerando os pensamentos... E a minha vida passou a ser uma febre metafísica, sempre descobrindo sentidos ocultos nas coisas, brincando com o fogo das analogias misteriosas, procrastinando a lucidez integral, a síntese normal para se denegrir [?].
Caí numa complexa indisciplina cerebral, cheia de indiferenças. Onde me refugiei? Tenho a impressão de que não me refugiei em parte nenhuma.
Abandonei-me, mas não sei a quê.
Concentrei e limitei os meus desejos, para os poder requintar melhor.
Para se chegar ao infinito, e julgo que se pode lá chegar, é preciso termos um porto, um só, firme, e partir dali para Indefinido.
Hoje sou ascético na minha religião de mim. Uma chávena de café, um cigarro e os meus sonhos substituem bem o universo e as suas estrelas, o trabalho, o amor, até a beleza e a glória. Não tenho quase necessidade de estímulos. Ópio tenho-o eu na alma.
Que sonhos tenho? Não sei. Forcei-me por chegar a um ponto onde nem saiba já em que penso, com que sonho, o que visiono. Parece-me que sonho cada vez de mais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o invisionável.
Não faço teorias a respeito da vida. Se ela é boa ou má não sei, não penso. Para meus olhos é dura e triste, com sonhos deliciosos de permeio. Que me importa o que ela é para os outros!
A vida dos outros só me serve para eu lhes viver, a cada um a vida que me parece que lhes convém no meu sonho.
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Texto: Livro do Desassossego - Bernardo Soares;
Desenho: Morte 404.

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