"Teu amor pelas cousas sonhadas era teu desprezo pelas cousas vividas."

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Lisbon Revisited.


  Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.  
  Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.  
  Não há na travessa achada o número da porta que me deram.  

  Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.  
  Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.  
  Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.  
  Até a vida só desejada me farta - até essa vida...  

  Compreendo a intervalos desconexos;  
  Escrevo por lapsos de cansaço;  
  E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.  
  Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;  
  Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;  
  ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.  

  Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...  
  E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,  
  Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa  
  (E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),  
  Nas estradas e atalhos das florestas longínquas  
  Onde supus o meu ser,  
  Fogem desmantelados, últimos restos  
  Da ilusão final,  
  Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,  
  As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus

  Outra vez te revejo,  
  Cidade da minha infância pavorosamente perdida...  
  Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...  

  Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,  
  E aqui tornei a voltar, e a voltar.  
  E aqui de novo tornei a voltar?  
  Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,  
  Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,  
  Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?  

  Outra vez te revejo,  
  Com o coração mais longínquo, a alma menos minha. 

  Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,  
  Transeunte inútil de ti e de mim,  
  Estrangeiro aqui como em toda a parte,  
  Casual na vida como na alma,  
  Fantasma a errar em salas de recordações,  
  Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem  
  No castelo maldito de ter que viver...  

  Outra vez te revejo,  
  Sombra que passa através das sombras, e brilha  
  Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,  
  E entra na noite como um rastro de barco se perde  
  Na água que deixa de se ouvir...  

  Outra vez te revejo,  
  Mas, ai, a mim não me revejo!  
  Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,  
  E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -  
  Um bocado de ti e de mim!..

Álvaro de Campos - 1926.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Morte.


Uma série de desastre e factos contrários ao meu desejo sucedem ao longo da minha vida.

Por isso me abandono à sorte, sem esperar muito dela.

A minha vida é inteiramente fútil e inteiramente triste.

domingo, 11 de outubro de 2009

Domingo Despedaçado.


 Meu coração chora  
 Na sombra dos parques,  
 Não tem quem o console  
 Verdadeiramente,  
 Exceto a própria sombra dos parques  
 Entrando-me na alma,  
 Através do pranto.  
 Dá-me rosas, rosas,  
 E llrios também...  
  
 Minha dor é velha  
 Como um frasco de essência cheio de pó.  
 Minha dor é inútil  
 Como uma gaiola numa terra onde não há aves,  
 E minha dor é silenciosa e triste  
 Como a parte da praia onde o mar não chega.  
 Chego às janelas  
 Dos palác ios arruinados  
 E cismo de dentro para fora  
 Para me consolar do presente.  
 Dá-me rosas, rosas,  
 E lírios também...  
  
 Mas por mais rosas e lírios que me dês,  
 Eu nunca acharei que a vida é bastante.  
 Faltar-me-á sempre qualquer coisa,  
 Sobrar-me-á sempre de que desejar,  
 Como um palco deserto.  
  
 Por isso, não te importes com o que eu penso,  
 E muito embora o que eu te peça  
 Te pareça que não quer dizer nada,  
 Minha pobre criança tísica,  
 Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,  
 Dá-me rosas, rosas,  

 E lírios também..

(Álvaro de Campos)

sábado, 10 de outubro de 2009

Reflexões silenciosas vespertinas.

Não sei que efeito subtil de luz, ou ruído vago, ou memória de perfume ou música, tangida por não sei que influência externa, me trouxe de repente, em pleno ir pela rua, estas divagações que registo sem pressa, ao sentar-me no café, distraidamente. Não sei onde ia conduzir os pensamentos, ou onde preferiria conduzi-los. O dia é de um leve nevoeiro húmido e quente, triste sem ameaças, monótono sem razão. Dói-me qualquer sentimento que desconheço; falta-me qualquer argumento não sei sobre quê; não tenho vontade nos nervos. Estou triste abaixo da consciência. E escrevo estas linhas, realmente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer qualquer coisa, mas para dar um trabalho à minha desatenção. Vou enchendo lentamente, a traços moles de lápis rombo - que não tenho sentimentalidade para aparar -, o papel branco de embrulho de sanduíches, que me forneceram no café, porque eu não precisava de melhor e qualquer servia, desde que fosse branco. E dou-me por satisfeito. Reclino-me. A tarde cai monótona e sem chuva, num tom de luz desalentado e incerto... E deixo de escrever porque deixo de escrever.

Loco image: Firenze - Italia.