"Teu amor pelas cousas sonhadas era teu desprezo pelas cousas vividas."

domingo, 29 de junho de 2008

Paisagem Íntima.


O Meu destino é a decadência.
Meu domínio foi outrora em vales fundos. O som de águas que nunca sentiram sangue rega o ouvido dos meus sonhos. O copado das árvores que esquece a vida era verde sempre nos meus esquecimentos. A lua era fluida como água entre pedras. O amor nunca veio àquele vale e por isso tudo ali era feliz. Nem sonho, nem amor, nem deuses em templo, passando entre a brisa e a hora una e sem que soubesse saudades das crenças mais bêbadas, mais escusas.
-B.S.-

sábado, 28 de junho de 2008

Impressões sobre um Lobo.

Já desde o primeiro olhar, ao entrar pela porta envidraçada da casa de minha tia,quando ergueu a cabeça à semelhança de um pássaro e aspirou o agradável odor da casa, de certo modo pressenti a singularidade daquele homem, e a minha primeira reação a tudo aquilo foi de repugnância. Tive a impressão (e minha tia, que ao contrário de mim não é de modo algum uma intelectual, teve quase que a mesma impressão) de que o homem estava enfermo, de que sofria de uma espécie qualquer de enfermidade, da alma, do espírito ou do caráter, e me defendi contra tudo isso com meu instinto de pessoa sã. Essa resistência, com o correr do tempo, foi-se transformando em simpatia, em compaixão para com aquele profundo e permanente sofredor, cujo isolamento e cuja morte íntima eu contemplava. Nesse decurso, cada vez mais me convencia de que a enfermidade daquele paciente não provinha de qualquer deficiência de sua natureza, mas, ao contrário, tão-somente da não logradaharmonia entre a riqueza de seus dons e sua força. Convenci-me de que Haller era um gênio do sofrimento; que ele, no sentido de várias acepções de Nietzsche, havia forjado dentro de si uma capacidade de sofrimento genial, ilimitada e terrível.Também me apercebi de que a base de seu pessimismo não era "o desprezo domundo'', mas antes o desprezo de si mesmo, pois podendo falar sem indulgência e impiedosamente das instituições e das pessoas, nunca se excluía a si próprio; era sempre o primeiro a quem dirigia suas setas, o primeiro a quem odiava e desprezava.Devo acrescentar aqui uma observação psicológica: embora saiba muito pouco sobrea vida do Lobo da Estepe, tenho bons motivos para acreditar que foi educado por pais e professores bondosos, porém severos e muito devotos, desses que fundamentam toda a educação no ' 'quebrantamento da vontade''. Tal destruição da personalidade e quebra do desejo não foram conseguidas com aquele aluno, de cuja prova saiu mais insensível e duro, orgulhoso e espiritual. Em vez de destruir sua personalidade, conseguiu aprender somente a odiar a si mesmo. Contra si próprio, contra esse objeto nobre e inocente, dirigiu a vida inteira toda a genialidade de sua fantasia, toda a forçade seu poderoso pensamento. Foi precisamente através do Cristo e dos mártires que aprendeu a lançar contra si próprio, antes de mais nada, cada severidade, cada censura, cada maldade, cada ódio de que era capaz. No que respeitava aos outros, ao mundo em redor, sempre estava fazendo os esforços mais heróicos e sérios para amálos,para ser justo com eles, para não fazê-los sofrer, pois o "Amarás teu próximo!" estava tão entranhado em sua alma como o odiar-se a si mesmo"; assim, toda a sua vida era um exemplo do impossível que é amar o próximo sem amor a si mesmo, de que o desprezo a si mesmo é em tudo semelhante ao acirrado egoísmo e produz afinal o mesmo desespero e horrível isolamento.
[O Lobo da Estepe - Hermann Hesse]

quinta-feira, 26 de junho de 2008

...

Em todos os lugares da vida, em todas as situações e convivências, eu fui sempre, para todos, um intruso. Pelo menos, fui sempre um estranho. No meio de parentes, como no de conhecidos, fui sempre sentido como alguém de fora. Não digo que o fui, uma só vez sequer, de caso pensado. Mas fui-o sempre por uma atitude espontânea da média dos temperamentos alheios.
Fui sempre, em toda a parte e por todos, tratado com simpatia. A pouquíssimos, creio, terá tão pouca gente erguido a voz, ou franzido a testa, ou falado alto ou de terça. Mas a simpatia, com que sempre me trataram, foi sempre isenta de afeição. Para os mais naturalmente íntimos fui sempre um hóspede, que, por hóspede, é bem tratado, mas sempre com a atenção devida ao estranho, e a falta de afeição merecida pelo intruso.
Não duvido que tudo isto, da atitude dos outros, derive principalmente de qualquer obscura causa intrínseca ao meu próprio temperamento. Sou porventura de uma frieza comunicativa, que involuntariamente obriga os outros a reflectirem o meu modo de pouco sentir.
Travo, por índole, rapidamente conhecimentos. Tardam-me pouco as simpatias dos outros. Mas as afeições nunca chegam. Dedicações nunca as conheci. Amarem, foi coisa que sempre me pareceu impossível, como um estranho tratar-me por tu.
Não sei se sofra com isto, se o aceite como um destino indiferente, em que não há nem que sofrer nem que aceitar.
Desejei sempre agradar. Doeu-me sempre que me fossem indiferentes. Órfão da Fortuna, tenho, como todos os órfãos, a necessidade de ser o objecto da afeição de alguém. Passei sempre fome da realização dessa necessidade. Tanto me adaptei a essa fome inevitável que, por vezes, nem sei se sinto a necessidade de comer.
Com isto ou sem isto a vida dói-me.
Os outros têm quem se lhes dedique. Eu nunca tive quem sequer pensasse em se me dedicar. Servem os outros: a mim tratam-me bem.
Reconheço em mim a capacidade de provocar respeito, mas não afeição. Infelizmente não tenho feito nada com que justifique a si próprio esse respeito começado quem o sinta; de modo que nunca chegam a respeitar-me deveras.
Julgo às vezes que gozo sofrer. Mas na verdade eu preferiria outra coisa.
Não tenho qualidades de Chefe, nem de sequaz. Nem sequer as tenho de satisfeito, que são as que valem quando essas outras faltem.
Outros, menos inteligentes que eu, são mais fortes.
Talham melhor a sua vida entre gente; administram mais habilmente a sua inteligência. Tenho todas as qualidades para influir, menos a arte de o fazer, ou a vontade, mesmo, de o desejar.
Se um dia amasse, não seria amado.
Basta eu querer uma coisa para ela morrer. O meu destino, porém, não tem a força de ser mortal para qualquer coisa. Tem a fraqueza de ser mortal nas coisas para mim.

B.S.

terça-feira, 24 de junho de 2008

O pastor amoroso perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu.
Nunca mais encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.
Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo;
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, estão presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito.

Caeiro (10-07-1930)

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Ode Marcial

Inúmero rio sem água — só gente e coisa,
Pavorosamente sem água!

Soam tambores longínquos no meu ouvido
E eu não sei se vejo o rio se ouço os tambores,
Como se não pudesse ouvir e ver ao mesmo tempo

Helahoho! Helahoho!

A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta...
Ela cosia à tarde indeterminadamente...
A mesa onde jogavam os velhos,

Tudo misturado, tudo misturtado com os corpos, com sangues,
Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror

Helahoho! Helahoho!

Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no meio da estrada,
E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror da vida.
Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de costura da viúva que mataram à baioneta
E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no meu coração

Sim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos eles
Que matou, violou, queimou e quebrou,
Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso com uma sombra disforme
Passeiam por todo o mundo como Ashavero,
Mas atrás dos meus passos soam passos do tamanho do infinito.

E um pavor físico de encontrar Deus faz-me fechar os olhos de repente.
Cristo absurdo da expiação de todos os crimes e de todas as violências,
A minha cruz está dentro de mim, hirta, a escaldar, a quebrar
E tudo dói na minha alma extensa como um Universo.

Arranquei o pobre brinquedo das mãos da criança e batil-lhe.
Os seus olhos assustados do meu filho que talvez terei e que matarão também
Pediram-me sem saber como toda a piedade por todos.

Do quarto da velha arranquei o retrato do filho e rasguei-o,
Ela, cheia de medo, chorou e não fez nada...
Senti de repente que ela era minha mãe e pela espinha abaixo passou me o sopro de Deus.

Quebrei a máquina de costura da viúva pobre.
Ela chorava a um canto sem pensar na máquina de costura.
Haverá outro mundo onde eu tenha que ter uma filha que enviúve e a quem aconteça isto?

Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trêmulos,
Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores,
Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isto se passou,
E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem que tudo seja o mesmo
Deus tenha piedade de mim que a não tive a ninguém!

domingo, 15 de junho de 2008

Abdicação.

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho… eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.

Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.

Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

- Pessoa - 1913.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Desassossego.


Isto não vem a propósito de nada.
Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa? Quantos Césares fui! E os gloriosos, que mesquinhos! César, salvo da morte pela generosidade de um pirata, manda crucificar esse pirata logo que, procurando-o bem, o consegue prender. Napoleão, fazendo seu testamento em Santa Helena, deixa um legado a um facínora que tentara assinar a Wellington. Ó grandezas iguais às da alma da vizinha vesga! Ó grandes homens da cozinheira de outro mundo! Quantos Césares fui, e sonho todavia ser.
Quantos Césares fui, mas não dos reais. Fui verdadeiramente imperial enquanto sonhei, e por isso nunca fui nada. Os meus exércitos foram derrotados, mas a derrota foi fofa, e ninguém morreu. Não perdi bandeiras. Não sonhei até ao ponto do exército, onde elas aparecessem ao meu olhar em cujo sonho há esquina. Quantos Césares fui, aqui mesmo, na Rua dos Douradores. E os Césares que fui vivem ainda na minha imaginação; mas os Césares que foram estão mortos, e a Rua dos Douradores, isto é, a Realidade, não os pode conhecer.
Atiro com a caixa de fósforos, que está vazia, para o abismo que a rua é para além do parapeito da minha janela alta sem sacada. Ergo-me na cadeira e escuto. Nitidamente, como significasse qualquer coisa, a caixa de fósforos vazia soa na rua que me declara deserta. Não há mais som nenhum, salvo os da cidade inteira. Sim, os da cidade dum domingo inteiro - tantos, sem se entenderem, e todos certos.
Quão pouco, no mundo real, forma o suporte das melhores meditações. O ter chegado tarde para almoçar, o terem-se acabado os fósforos, o ter eu atirado, individualmente, a caixa para a rua, maldisposto por ter comido fora de horas, ser domingo a promessa aérea de um poente mau, o não ser ninguém no mundo, e toda a metafísica.

Mas quantos Césares fui!
- Bernardo Soares -