"Teu amor pelas cousas sonhadas era teu desprezo pelas cousas vividas."

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Manhã.


Acordei hoje muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me logo da cama, sob o estrangulamento de um tédio incompreensível. Nenhum sonho o havia causado; nenhuma realidade o poderia ter feito. Era um tédio absoluto e completo, mas fundado em qualquer coisa. No fundo obscuro da minha alma, invisíveis, forças desconhecidas travavam uma batalha em que meu ser era o solo, e todo eu tremia do embate incógnito. Uma náusea física da vida inteira nasceu com o meu despertar. Um horror a ter que viver ergueu-se comigo da cama. Tudo me pareceu oco e tive a impressão fria de que não há solução para problema algum.

  Uma inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos mínimos. Tive receio de endoidecer, não de loucura, mas de ali mesmo. O meu corpo era um grito latente. O meu coração batia como se falasse.

  Com passos largos e falsos, que em vão procurara tornar outros, percorri, descalço, o comprimento pequeno do quarto, e a diagonal vazia do quarto interior, que tem a porta ao canto para o corredor da casa. Com movimentos incoerentes e imprecisos, toquei nas escovas em cima da cómoda, desloquei uma cadeira, e uma vez bati com a mão movida em baloiço o ferro acre dos pés da cama inglesa. Acendi um cigarro, que fumei por subconsciência, e só quando vi que tinha caído cinza sobre a cabeceira da cama - como, se eu não me debruçara ali? - compreendi que estava possesso, ou coisa análoga, em ser quando não em nome, e que a consciência de mim, que eu deveria ter, se tinha intervalado com o abismo.

  Recebi o anúncio da manhã, a pouca luz fria que dá um vago azul branco ao horizonte que se revela, como um beijo de gratidão das coisas. Porque essa luz, esse verdadeiro dia, libertava-me, libertava-me não sei de quê, dava-me o braço à velhice incógnita, fazia festas à infância postiça, amparava o repouso mendigo da minha sensibilidade transbordada.

  Ah, que manhã é esta, que me desperta para a estupidez da vida, e para a grande ternura dela! Quase que choro, vendo esclarear-se diante de mim, debaixo de mim, a velha rua estreita, e quando os taipais da mercearia da esquina já se revelam castanho sujo na luz que se extravasa um pouco, o meu coração tem um alívio de conto de fadas reais, e começa a conhecer a segurança de se não sentir.

  Que manhã esta mágoa! E que sombras se afastam? E que mistérios se deram? Nada: o som do primeiro eléctrico como um fósforo que vai alumiar a escuridão da alma, e os passos altos do meu primeiro transeunte que são a realidade concreta a dizer-me, com voz de amigo, que não esteja assim.


sexta-feira, 6 de novembro de 2009

À margem...


O meu desalinhamento para com a vida não poderia resultar senão no isolamento prematuro em que me encontro e que não poderia ser mais natural diante de qualquer coisa obscura intrínseca ao meu temperamento. Minha voz calada, minha letra não notada, meu sorriso por existir, meus passos silenciosos sobre as folhas que secaram no parque abandonado... mas que ecoam no meu cotidiano.
Um Café amargo, uma música discreta, um pouco de sol, um pouco de brisa, o frescor da chuva a se aproximar, umas árvores que emolduram a distância, o desejo de ser feliz, a mágoa de os dias passarem, a ciência sempre incerta e a verdade sempre por descobrir completam minhas horas... Mais nada, mais nada... Sim, mais nada...