"Teu amor pelas cousas sonhadas era teu desprezo pelas cousas vividas."

sábado, 30 de maio de 2009

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O gládio de um relâmpago frouxo volteou sombriamente no quarto largo.
E o som a vir, suspenso um hausto amplo, retumbou, emigrando profundo.
O som da chuva chorou alto, como carpideiras no intervalo das falas. Os pequenos sons destacaram-se cá dentro, inquietos.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Trovoada.



Como nos dias em que a trovoada se prepara e os ruídos da rua falam alto com uma voz solitária.
A rua franziu-se de luz intensa e pálida, e o negrume baço tremeu, de leste a oeste do mundo, com um estrondo feito de escangalhamentos ecoantes... A tristeza dura da chuva bruta piorou o ar negro de intensidade feia. Frio, morno, quente - tudo ao mesmo tempo -, o ar em toda a parte era errado. E, a seguir, pela ampla sala uma cunha de luz metálica abriu brecha nos repousos dos corpos humanos, e, com o sobressalto gelado, um pedregulho de som bateu em toda a parte, esfacelando-se com silêncio duro. O som da chuva diminui como uma voz de menos peso. O ruído das ruas diminui angustiantemente. Nova luz, de um amarelado rápido, tolda o negrume surdo, mas houve agora uma respiração possível antes que o punho do som trémulo ecoasse súbito doutro ponto; como uma despedida zangada, a trovoada começava a aqui não estar com um sussurro arrastado e findo, sem luz na luz que aumentava, o tremor da trovoada acalmava nos largos longes - rodava em Almada...
Uma súbita luz formidável estilhaçou-se . Tudo estacou. Os corações pararam um momento. Todos são pessoas muito sensíveis. O silêncio aterra como se houvera morte. O som da chuva que aumenta alivia como lágrimas de tudo. Há chumbo.

domingo, 24 de maio de 2009

O Coração, se pudesse pensar, pararia...

Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido - sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo uma mera ideia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal. Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais.
Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que comummente se chama a Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia.
Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.

sábado, 16 de maio de 2009

Não...


Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim.
Letras: Bernardo Soares.
Imagem: Morte 404.

domingo, 10 de maio de 2009

Do Subterrâneo.


Sou um homem doente... Sou mau. Nada tenho de simpático. Julgo estar doente do fígado, embora não o perceba nem saiba ao certo onde reside o meu mal. Não me trato, e nunca me tratei, por muito que considere a medicina e os médicos, pois sou altamente surpersticioso, pelo menos o bastante para ter fé na medicina. (Possuo instrução suficiente para não ser surpersticioso e, no entanto, sou... ) Não, se não me trato é por pura maldade; é assim mesmo. O senhor não compreenderá isto, por acaso? Pois compreendo-o e basta. Não há dúvida de que eu não conseguiria explicar a quem prejudico neste caso, com a minha maldade. Compreendo perfeitamente que, não me tratando, não prejudico a ninguém, nem sequer os médicos; sei melhor do que ninguém que só a mim próprio prejudico. Não importa; se não me trato é por maldade. Tenho o fígado doente? Pois que rebente!

Memórias do Subterrâneo
Fiódor Dostoievskiy.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

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O desgosto de não encontrar nada encontrei comigo pouco a pouco...
Esforcei-me porque todos os meus pensamentos, todos os capítulos quotidianos da minha experiência me fornecessem apenas sensações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orientei essa estética para puramente individual. Fi-la minha apenas.
Reduzi ao mínimo o meu contacto com os outros. Fiz o que pude para perder toda a afeição à vida. Do próprio desejo da glória lentamente me despi, como quem cheio de cansaço se despe para repousar.
Envelheci pelas sensações... Gastei-me gerando os pensamentos... E a minha vida passou a ser uma febre metafísica, sempre descobrindo sentidos ocultos nas coisas, brincando com o fogo das analogias misteriosas, procrastinando a lucidez integral, a síntese normal para se denegrir [?].
Caí numa complexa indisciplina cerebral, cheia de indiferenças. Onde me refugiei? Tenho a impressão de que não me refugiei em parte nenhuma.
Abandonei-me, mas não sei a quê.
Concentrei e limitei os meus desejos, para os poder requintar melhor.
Para se chegar ao infinito, e julgo que se pode lá chegar, é preciso termos um porto, um só, firme, e partir dali para Indefinido.
Hoje sou ascético na minha religião de mim. Uma chávena de café, um cigarro e os meus sonhos substituem bem o universo e as suas estrelas, o trabalho, o amor, até a beleza e a glória. Não tenho quase necessidade de estímulos. Ópio tenho-o eu na alma.
Que sonhos tenho? Não sei. Forcei-me por chegar a um ponto onde nem saiba já em que penso, com que sonho, o que visiono. Parece-me que sonho cada vez de mais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o invisionável.
Não faço teorias a respeito da vida. Se ela é boa ou má não sei, não penso. Para meus olhos é dura e triste, com sonhos deliciosos de permeio. Que me importa o que ela é para os outros!
A vida dos outros só me serve para eu lhes viver, a cada um a vida que me parece que lhes convém no meu sonho.
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Texto: Livro do Desassossego - Bernardo Soares;
Desenho: Morte 404.